O aumento dos casos de demência, incluindo Alzheimer, é uma espécie de efeito colateral da longevidade. Isso porque o risco da condição neurodegenerativa aumenta com o envelhecimento e essa questão é uma das maiores preocupações da atualidade em termos de saúde pública.
As demências começam a se desenvolver anos – até décadas – antes do aparecimento dos primeiros sintomas e como ainda não existe nenhum remédio eficaz capaz de reverter o problema uma vez que ele está instalado, muitas iniciativas se concentram em intervenções que podem prevenir ou postergar seu aparecimento.
Uma das iniciativas mais estudadas atualmente é o potencial do uso de neurogames, ou treinamento cognitivo digital, contra a condição. Trata-se do uso de aplicativos e sites que oferecem exercícios de treinamento cerebral para melhorar os processos cognitivos gerais, como velocidade de processamento, atenção e memória de trabalho, com a premissa de que essas melhorias serão traduzidas para ganhos em funcionalidade.
— São exercícios, desenvolvidos e validados cientificamente, que trabalham o processamento cerebral para que o indivíduo consiga processar com mais eficácia e mais rapidez — explica o psiquiatra Rogerio Panizzutti, professor e pesquisador da UFRJ.
A mais nova evidência sobre o assunto é um estudo realizado pelo Laboratório de Neurociências e Aprimoramento Cerebral (LabNACe) da UFRJ, que demonstrou que o treinamento cognitivo digital levou a melhorias na funcionalidade de idosos com comprometimento cognitivo leve, condição que indica uma perda cognitiva maior do que a esperada para a idade, indicando maior risco de demência.
— Nessa fase, a perda é muito sutil. Então a pessoa ainda é independente para fazer todas as atividades, mas demora mais tempo para realizá-las ou comete mais erros, como deixa de pagar alguma conta, faz algum erro de cálculo ou se esquece de tomar um medicamento — explica a terapeuta ocupacional Cíntia Monteiro Carvalho, primeira autora do estudo e pesquisadora do LabNACe.
Anteriormente, a mesma equipe havia publicado um trabalho que mostrou que idosos sem problemas de memória apresentaram ganhos na parte cognitiva, de atenção e memória, após fazerem esses exercícios. Já o novo estudo, publicado recentemente na revista científica GeroScience, da American Aging Association, analisou o impacto dos neurogames na melhora da funcionalidade dos participantes, ou seja, na capacidade de realizar tarefas do dia a dia.
— Essa é a fase intermediária entre envelhecimento saudável e demência. Então, é muito interessante e crucial para intervir porque a gente consegue retardar, em muitos casos, essa perda cognitiva — pontua Carvalho.
O treinamento cerebral envolve atividades que desafiam seu cérebro a manter seu pensamento aguçado. No estudo, 66 participantes, com pelo menos 60 anos de idade e comprometimento cognitivo leve foram divididos em dois grupos. Um deles realizou exercícios de treinamento cognitivo digital da versão brasileira do programa BrainHQ, focados principalmente em melhorar as funções executivas, que são fundamentais para a autonomia, a tomada de decisões e a adaptação ao ambiente.
Por exemplo, em um dos jogos que buscava exercitar as habilidades de atenção dividida, o voluntário precisava acompanhar uma bola em movimento na tela. Conforme o jogo seguia, outras bolas, iguais à primeira, surgia. No final da atividade, ele precisava indicar, por meio de um clique no mouse, qual era a bola inicial.
Durante cada sessão de treinamento, os participantes completaram 15 minutos de quatro exercícios diferentes. A recomendação era treinar pelo menos duas vezes por semana, totalizando 10 horas de treinamento. Os exercícios tinham sua velocidade, tipo de estímulo em resposta ao desempenho do participante e nível de dificuldade da tarefa balizados automaticamente de acordo com o desempenho do participante. Os participantes do outro grupo apenas jogaram jogos online pelo mesmo período.
Os resultados mostraram que o treinamento cognitivo digital levou a uma melhoria de 21% na funcionalidade e o aprendizado em relação aos testes em 36,75%, em comparação com o grupo que se envolveu em jogos comuns de computador.
— Idosos com problemas de memória ficam mais capazes de realizar suas rotinas diárias após praticarem games para o cérebro. Isso animou muito a gente porque depois do treino, essas pessoas conseguem aprender melhor, ficam mais confiantes para realizar as tarefas do dia a dia. É o que a gente chama de funcionalidade, que é sempre o nosso sonho de consumo conseguir que a pessoa tenha uma vida melhor — diz Panizzutti, que é o pesquisador responsável pelo novo estudo. — Estes estudos que publicamos são pioneiros na verificação científica de neurogames na população mais velha brasileira.
A fonoaudióloga aposentada Léa Carvalhosa, de 74 anos, é uma das voluntárias do estudo. Ela conta que o treinamento a ajudou a ficar mais atenta e a realizar melhor suas tarefas diárias.
— Fiz a inscrição e achei surpreendente porque são vários jogos que trabalham todas as questões, atenção, percepção visual, orientação espacial e me ajudou muito.
Os pesquisadores ainda não têm dados de longo prazo para saber quanto tempo o efeito desses jogos vai durar nem se isso será capaz de prevenir o desenvolvimento de demência. Mas um estudo semelhante, realizado nos Estados Unidos, mostrou que pessoas que realizaram esse tipo de exercício apresentaram menos demência.
— Obviamente não podemos falar que é uma bala de prata que vai resolver tudo, mas se você diminuir a chance de a pessoa evoluir para demência, que é o que mostram estudos realizados nos EUA, é um ganho importante — diz o pesquisador.
Diante disso, eles acreditam que o treinamento cognitivo digital tem potencial como uma intervenção não farmacológica para melhoria funcional e cognitiva em indivíduos com comprometimento cognitivo leve.
— A gente pode pensar no treino para promover a saúde cerebral. é como se da mesma forma a gente precisasse fazer atividade física para treinar os nossos músculos, o treino também vai ajudar a gente a aprimorar determinados domínios cognitivos — recomenda Cinthia.
Uma revisão de estudos sobre o impacto de jogos cerebrais para pessoas com mais de 60 anos que não apresentam declínio cognitivo, mostrou essa atividade pode ser eficaz em diversas áreas, incluindo: a capacidade de planejar, focar sua atenção e conciliar múltiplas tarefas; a rapidez com que o cérebro recebe, entende e responde às informações; quão bem uma pessoa se lembra das informações que ouve e a capacidade de reter e recuperar informações, como uma lista de compras ou um número de telefone, temporariamente.
O impacto da atividade física
Não é só a atividade cerebral que parece ter impacto positivo sobre a redução do risco de demência. A musculação também protege o cérebro de idosos contra a neurodegeneração, de acordo com um estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), publicado na revista científica GeroScience.
No trabalho, a equipe analisou o cérebro e o desempenho da memória de 44 pessoas com comprometimento cognitivo leve. Os participantes foram divididos em dois grupos: um deles praticou musculação de intensidade moderada a alta e com progressão da carga, duas vezes por semana, durante seis meses. Os demais não realizaram o exercício durante o período do estudo e integraram o grupo-controle.
Os resultados revelam que o treino de força não só foi capaz de melhorar o desempenho da memória como também alterar a anatomia cerebral. Após seis meses, os participantes que praticaram musculação apresentaram proteção contra atrofia no hipocampo e pré-cúneo – áreas cerebrais associadas à doença de Alzheimer –, além de melhoras nos parâmetros que refletem a saúde dos neurônios (integridade da substância branca).
Os voluntários que praticaram musculação tiveram melhor desempenho na memória episódica verbal, melhora na integridade dos neurônios e áreas relacionadas à doença de Alzheimer protegidas contra atrofia, ao passo que o grupo-controle apresentou piora nos parâmetros cerebrais.
Diante dos resultados, os pesquisadores acreditam que um período mais longo de treinamento promova resultados ainda mais positivos. A musculação pode proteger o cérebro contra demências estimulando a produção do fator de crescimento neural (proteína importante para o crescimento, manutenção e sobrevivência de neurônios) e promovendo a desinflamação global do organismo.
Fonte: O Globo