Médicos de família reduzem internações evitáveis e custos ao SUS, mostra estudo

O médico de família e comunidade Adalberto Guido, do centro de saúde Providência, em Belo Horizonte, conversa com paciente - Arquivo pessoal

Um estudo publicado na revista científica BMJ (The British Medical Journal) traz novas evidências para um velho debate da saúde pública brasileira: qual é o impacto real dos médicos de família e comunidade na atenção primária? Há diferença em relação aos médicos generalistas?

Segundo a pesquisa, sim. Quanto maior a proporção de carga horária de médicos com residência em medicina de família e comunidade (MFC), menores são os índices de internações por condições sensíveis à atenção primária, um conjunto de doenças que, bem manejadas na base, evitam hospitalizações.

O estudo estima uma redução geral de 11,89% nas internações por causas como diabetes, hipertensão, asma, pneumonias e doenças respiratórias.

O impacto é ainda mais forte quando analisado por doença: internações por diabetes caem 32,8%, seguidas por reduções em doenças respiratórias (19,4%), asma (19,5%) e pneumonias bacterianas (15,6%).

A análise abrangeu mais de 600 mil internações registradas em Belo Horizonte entre 2017 e 2021, cruzando dados geolocalizados com a cobertura dos 152 centros de saúde da cidade.

“Quando há falhas no cuidado, esses casos evoluem para internações, gerando sofrimento e aumentando custos hospitalares”, afirma o médico de família Gregório Rodrigues, um dos autores.

A pesquisa estima uma redução de 10,6% nos gastos, o que poderia representar economia próxima de R$ 30 milhões ao SUS no período analisado.

Rodrigues diz que o estudo nasceu de uma inquietação de sua própria formação. “Sempre questionavam por que escolher essa especialidade. Colegas pediam: parem de defender a medicina de família com anedotas, provem seus efeitos.”

Pesquisas anteriores em Curitiba e no Rio de Janeiro já apontavam na mesma direção, mas faltavam análises amplas e replicáveis. A equipe cruzou dados do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde ) com registros da Comissão de Residência Médica, mapeando formação e tempo de atuação de cada profissional.

“Onde havia mais médicos de família com residência, havia menos internações. É uma inferência, mas uma inferência robusta”, diz. O fato de doenças preveníveis por vacina não apresentarem variação reforça a consistência dos achados, segundo o médico.

Com experiência em gestão pública, a enfermeira Carmen Silvia Guariente, vice-presidente do Cosems-SP (Conselho de Secretários Municipais de Saúde), diz que a residência em MFC forma profissionais com uma compreensão mais profunda da lógica da atenção primária.

“Quem faz residência vivencia o vínculo, a longitudinalidade [acompanhamento de um paciente ao longo do tempo], entende o território e suas vulnerabilidades.” Ela afirma que essa formação também favorece que o profissional olhe para os determinantes sociais, como violência, tráfico, nascimentos e envelhecimento, e organize a agenda de forma mais efetiva. “A agenda não é do médico, é da equipe”.

Segundo Carmen, a prática mostra diferenças concretas. “Trabalhei com uma médica com residência em MFC e ela já chegou conhecendo o território, conversava com o agente comunitário, definia prioridades, dialogava com o hospital.” Essa bagagem, diz, gera sintonia imediata com a equipe e fortalece o cuidado.

Apesar da cobertura da ESF (Estratégia de Saúde da Família) ser próxima de 100% em Belo Horizonte, apenas cerca de 10% dos médicos têm formação em MFC, de acordo com o estudo.

Para Rodrigues, isso reflete a falta de políticas de estímulo à formação e fixação no SUS dos médicos de família com residência. Ele defende uma remuneração diferenciada, incentivos à residência, pagamento adequado a preceptores e tempo protegido para supervisão.

A alta rotatividade é um outro problema. “A longitudinalidade importa. Quanto mais tempo o médico permanece, mais efeito ele produz. A lógica imediatista do gestor, que acha que economiza contratando qualquer profissional, é um tiro no pé.”

Segundo Carmen Guariente, do Cosems-SP, não há incentivos financeiros para quem faz residência médica. “A gente abre vaga igual para generalista ou especialista. Não existe remuneração atrativa nem carreira estruturada.”

Como muitas equipes são contratadas por organizações sociais de saúde (OSs), é comum que os profissionais não tenham estabilidade e convivam com contratos de trabalhos precários.

Ela considera a migração de médicos de família do SUS para o setor privado um desafio adicional para o sistema público de saúde. “Eles [planos de saúde] adotam modelos semelhantes à saúde da família com nomes bonitos. Demoramos para formar bons profissionais e eles são levados pelo mercado com salários maiores”, afirma.

Para ela, fixar equipes exige carreira, remuneração adequada e financiamento robusto, já que municípios arcam com até 70% dos custos das unidades de saúde.

Em uma década, os municípios brasileiros foram os principais responsáveis pela expansão do gasto público em saúde, segundo um estudo do Ieps (Instituto de Estudos de Políticas de Saúde) realizado em parceria com a Umane.

Carmen defende políticas estaduais e federais que valorizem a formação. Ela lembra que programas como o Mais Médicos não substituem a residência, por não oferecerem a mesma imersão com preceptoria contínua.

Para Gregório Rodrigues, a discussão vai além da defesa de uma categoria: “É a defesa do SUS. Quando a atenção primária funciona, todo o resto funciona melhor.”

Fonte: Folha de S. Paulo

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