Fibromialgia: quando a dor se torna deficiência? Pacientes e médicos comentam nova lei

A principal característica da fibromialgia é provocar dores pelo corpo Foto: fizkes/Adobe Stock

Fibromialgia, fadiga crônica, síndrome complexa de dor regional e outras doenças correlatas passaram a figurar no rol das condições que podem ser consideradas deficiência.

A lei, sancionada no final de agosto, entrará em vigor em janeiro de 2026. A partir dela, os pacientes que passarem por uma avaliação chamada biopsicossocial poderão se beneficiar de políticas específicas, como gratuidade no transporte público, atendimento prioritário, isenção de impostos e Benefício de Prestação Continuada (BPC). O texto também reforça a garantia de direito a atendimento multidisciplinar dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).

Acontece que médicos e pacientes ainda não têm clareza sobre como essa avaliação vai funcionar na prática. Isso porque, enquanto a síndrome de dor regional tem sinais clínicos e um diagnóstico mais objetivo, há uma dose importante de subjetividade quando se fala de fibromialgia, e também de fadiga crônica.

A reportagem conversou com médicos e pacientes, além de autoridades do governo federal, e explica, em cinco pontos, os desafios para a efetivação da lei.

1 – O que é a fibromialgia?

O nome da síndrome é autoexplicativo: “fibro” se refere às fibras; “mio”, aos músculos; e “algia”, à dor. “É a dor da fibra muscular”, resume o reumatologista Marco Antônio Araújo da Rocha Loures, do conselho consultivo da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) e da Academia Brasileira de Reumatologia.

Além da dor no corpo todo, a fibromialgia pode cursar com fadiga, sono não reparador (quando, mesmo após dormir, a pessoa ainda acorda cansada), alterações de memória e atenção e até desarranjos intestinais.

As causas dessa dor generalizada ainda são um mistério — por conta disso, inclusive, ela é considerada uma síndrome, e não uma doença. A compreensão atual é de que haja uma modificação na forma como o sistema nervoso central processa a dor.

“É um defeito de processamento no cérebro. É como se fosse um defeito no software, que passa a captar mais dor”, explica Carlos Marcelo de Barros, médico especializado em dor e presidente da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED).

2 – Diagnóstico

Do ponto de vista do diagnóstico, ela é considerada uma condição “de exclusão”. Isso acontece porque não há um teste específico para detectá-la. Logo, exige uma decisão clínica baseada no histórico do paciente e também na eliminação de outras doenças, especialmente de problemas reumáticos, endócrinos e metabólicos.

A ideia é excluir justamente doenças que, por si só, seriam capazes de causar uma dor crônica no corpo todo, de acordo com os especialistas. Alguns exemplos são problemas na tireoide e hepatite C.

Exames de imagem e até de sangue podem ser necessários nesse processo — mas, no caso da fibromialgia, em geral é esperado não encontrar nenhum sinal de lesão e inflamação.

Muitos pacientes, segundo os especialistas, podem ter o que são chamadas de comorbidades, isto é, outros quadros de saúde que cursam junto com a fibromialgia. Um exemplo é a própria fadiga crônica. Quadros de depressão e ansiedade também são comuns. “Os neurotransmissores que modulam a dor são os mesmos que modulam as emoções”, descreve Barros.

A dor crônica é um sintoma, e sua descrição é, sobretudo, subjetiva. É justamente essa característica que faz da síndrome um verdadeiro desafio em termos de diagnóstico — e que vai tornar a avaliação biopsicossocial muito complexa, na visão dos médicos.

“Diferente de tratar uma hipertensão, que você tem um dado objetivo, quando se trata do sintoma, que pode ser dor, falta de ar, tontura, esquecimento ou fadiga, cai na subjetividade do relato do paciente”, comenta Hazem Ashmawi, supervisor da Equipe de Controle de Dor da Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas e do Programa de Residência Médica em Dor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Alguns questionários são usados para medir o impacto da síndrome, conta o reumatologista José Eduardo Martinez, presidente da SBR, mas, invariavelmente, haverá um grau de subjetividade.

Barros diz que, às vezes, a investigação que culmina no diagnóstico do paciente leva meses — e exige uma equipe multidisciplinar.

Como se não bastasse, o presidente da SBED lembra que é bastante comum pacientes receberem diagnósticos equivocados de fibromialgia, resultado de falhas na exclusão de outras doenças, e comorbidades podem passar despercebidas.

“Muitos indivíduos podem ter uma doença pior ou um quadro para o qual existe tratamento, e ele não está sendo oferecido.”

Flavia Mesquita, presidente da Associação Nacional de Fibromiálgicos e Doenças Correlacionadas (ANFIBRO), descobriu recentemente que, além da fibromialgia — diagnóstico feito há cinco anos —, também vive com uma doença rara, a síndrome de Ehlers-Danlos.

Trata-se de uma disfunção genética, que afeta o tecido conjuntivo, responsável por dar força e elasticidade às estruturas subjacentes do corpo, de acordo com a Mayo Clinic, instituição médica referência nos Estados Unidos. “Fiquei anos subdiagnosticada, fazendo o tratamento errado e só agravando o meu quadro”, diz.

De olho em todas essas questões, os médicos destacam um cenário de insegurança referente ao diagnóstico correto, que abre margem para distorções no processo de concessão de benefícios. Os pacientes também temem a falta de padronização: têm receio de verem sua dor deslegitimada e seus direitos negados.

Os especialistas questionam ainda se o próprio SUS, responsável pelo tratamento do paciente, e o INSS, pela perícia, têm equipes suficientes — e bem treinadas — para efetivamente colocar a lei em prática.

“O sistema de saúde não está preparado para acolher pacientes com dor crônica e fazer diagnóstico correto”, reflete o presidente da SBED. “Não se ensina dor nas faculdades.”

O Ministério da Saúde aponta que pacientes com fibromialgia já são atendidos no SUS no âmbito do Programa Nacional de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas. Segundo a pasta, em 2024, o SUS registrou 438,8 mil atendimentos ambulatoriais relacionados à fibromialgia, com destaque para terapias de reabilitação e manejo da dor, além de 481 internações hospitalares — os registros correspondem ao total de atendimentos, não ao número de pessoas atendidas.

3 – Cíclica

Segundo Barros, a fibromialgia atua em ciclos. “O paciente vai ter momentos piores e melhores. Períodos de extrema debilidade e outros em que consegue levar uma vida quase normal. Esse é o padrão típico, mas isso não elimina as limitações nem o sofrimento”, descreve o presidente da SBED.

Trata-se de mais um ponto que pode complicar a avaliação da doença por peritos.

4 – Graus

Martinez explica que a fibromialgia causa “graus variados de acometimento”. Alguns dão conta de trabalhar normalmente; outros, só se o local e/ou as funções passarem por adaptações. “E tem fibromiálgico que realmente não consegue mais trabalhar por apresentar alto grau de incapacidade”, concorda Flavia, presidente da Anfibro.

Ela própria é um exemplo de quem viu a vida mudar radicalmente por causa da doença. “Tive que abrir mão de tudo de repente”, conta.

Desde criança, Flavia sentia constantes dores no quadril e nos joelhos — chegou até a fazer cirurgias na tentativa de resolvê-las. “Mesmo com essas dores, levava minha vida normalmente.”

Tudo mudou há cerca de cinco anos. Ela estava em um dos melhores momentos de sua carreira quando começou a sentir muitas dores nas mãos. Inicialmente, o computador foi o culpado e Flavia deu início a um tratamento para artrose, já que foram detectados alguns desgastes nas articulações.

As dores, porém, progrediram, passando a acometer a lombar e, na sequência, as costelas. “Era uma dor absurda. Vi, então, que tinha algo de muito errado.” Foi aí que recebeu o diagnóstico de fibromialgia.

Durante cerca de seis meses, ela teve três episódios de dores intensas. No terceiro, falou para o chefe: “Não aguento mais, preciso sair.” Os três meses seguintes foram passados quase inteiramente na cama devido a um cansaço extremo — a fadiga crônica.

As crises foram se prolongando e se tornando constantes, e Flavia viu a vida se deteriorar. “Meu casamento terminou. Perdi meu apartamento. Depois, meu carro. Fui perdendo tudo.”

Ela voltou a morar com os pais. “Fiquei imaginando: e as pessoas que não têm suporte familiar como eu, como fazem? Foi assim que entrei na luta.”

Segundo os médicos, uma minoria dos indivíduos chegará a um grau tão alto de incapacidade, o que levaria ao reconhecimento como pessoa com deficiência. Segundo Martinez, em geral, os casos mais graves são daqueles pacientes que apresentam comorbidades. Daí entra o ponto a seguir.

5 – Avaliação biopsicossocial

Os pacientes com fibromialgia que pleitearem o reconhecimento enquanto pessoa com deficiência terão de passar pelo que é chamado de avaliação biopsicossocial em conformidade com o o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Trata-se de um olhar que vai além da síndrome e da incapacidade em si, e compreende como isso se relaciona a um contexto muito maior da vida daquela pessoa.

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas – Art. 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência

Essa avaliação precisaria, em tese, ser multidisciplinar e seguir a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Alguns especialistas, no entanto, apontam que a CIF não está bem estabelecida no País — falta treinamento, dizem. Há críticas também em relação a uma supervalorização do componente biológico/médico em detrimento das questões sociais e psíquicas.

Todo esse contexto, somado à alta subjetividade envolvida no diagnóstico da fibromialgia, criam uma série de incertezas sobre como, na prática, a avaliação dos pacientes por peritos funcionará quando a regra passar a valer no ano que vem.

A reportagem levou essas críticas e também os questionamentos de médicos e pacientes ao Ministério da Previdência Social, ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

O INSS apenas aconselhou que a reportagem entrasse em contato com a Previdência. A pasta, por sua vez, disse somente que a perícia médica das pessoas com fibromialgia será feita “de maneira cuidadosa e técnica”.

A pasta de Direitos Humanos respondeu que, como o parâmetro é a avaliação biopsicossocial — com um olhar além do diagnóstico —, não será necessário criar critérios específicos para fibromialgia. Segundo o ministério, isso, além da previsão de equipe de avaliadores multidisciplinar, ajudará a lidar com a subjetividade do diagnóstico.

Quanto ao uso da CIF, a pasta afirmou que ela é a “base conceitual dos instrumentos de avaliação biopsicossocial utilizados no Brasil”, “mesmo que sua implementação plena ainda esteja em fase de consolidação no território nacional”.

Um grupo de trabalho com a função de propor a uniformização desses instrumentos foi criado pelo governo federal em 2023. O grupo recomendou o uso do Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBrM), baseado na CIF.

“O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania conduz atualmente estudos de impacto financeiro, planejamento de implementação e avaliação prévia dos efeitos, com o objetivo de viabilizar a adoção do modelo em todo o País”, disse a pasta.

“Essa lei é só o começo”, avalia Flavia. “Precisamos garantir que essa avaliação seja justa”, conclui.

Fonte: Estadão

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