Já aconteceu de você sentir um sabor ou um aroma específico e, na mesma hora, aquilo despertar uma lembrança repentina ou um súbito conforto? Pode ser um cheiro de alho dourando na panela que lembra o tempero da comida de alguém especial, um bolo de fubá que remete aos cafés de domingo, uma sopa que aquece como nos dias frios ao lado da família, um doce que tem gosto de infância. Especialistas explicam que o olfato e o paladar estão intimamente ligados às regiões do cérebro responsáveis pela memória e pelas emoções. Esse caminho ajuda a explicar por que comer mobiliza tantos sentimentos profundos.
Da ficção à neurociência: o elo real entre comida e memória
Recentemente, a relação entre comida e afeto na ficção ganhou destaque na minissérie coreana “Bon appétit, Vossa Majestade”, disponível na Netflix. O drama mostra como os sabores podem funcionar como gatilhos emocionais, unindo personagens, despertando lembranças e sentimentos. Tal como acontece na realidade, cada prato servido na trama pela cozinheira chef real vai além da nutrição: é um elo afetivo, carregado de histórias e significados.
Se na ficção os sabores funcionam como gatilhos de afeto, na vida real a ciência mostra que esse elo entre memória e comida tem uma base neurológica bem definida. Especialistas afirmam que o paladar e o olfato estão diretamente conectados ao sistema límbico, área do cérebro responsável pelas emoções e memórias.
— Quando sentimos um cheiro ou sabor familiar, o cérebro ativa regiões como o hipocampo e a amígdala, que armazenam memórias afetivas. É como se esses sentidos fossem atalhos diretos para a nossa “caixinha de lembranças”. Por isso, um simples aroma pode nos transportar imediatamente para um momento da infância ou uma lembrança marcante — afirma Aline Quissak, nutricionista, especialista em psicologia da alimentação, pesquisadora e CEO do Scanner da Saúde.
— Essa conexão é tão poderosa que usamos termos como “gosto de infância” ou “cheiro de casa de vó” sem pensar — completa, explicando que isso acontece rapidamente porque o bulbo olfatório, que processa o olfato, tem ligação direta para o sistema límbico, sem precisar passar por áreas mais racionais do cérebro.
Se por um lado o cérebro explica o fenômeno, por outro, as emoções dão cor a essa experiência, nem sempre com lembranças boas.
Segundo Cristiane Pertusi, psicóloga, psicoterapeuta, coach e presidente da Associação Brasileira de Terapia Familiar (ABRATEF), todas as nossas recordações ficam ligadas ao cheiro, o que significa que tanto coisas boas quanto as ruins podem ser revisitadas através do olfato.
— Na prática, muitos traumas ficam ligados ao cheiro. Por exemplo, ex-soldados que têm lembranças ao sentir o cheiro de pólvora ou uma mulher que foi assediada pode ter gatilhos por conta de algum cheiro específico — diz a psicóloga.
A comida como primeiro afeto
Mas o mesmo mecanismo que pode acionar lembranças traumáticas também desperta sensações de conforto e acolhimento. E é justamente na relação com a comida, desde a infância, que esse elo afetivo se revela de forma mais intensa, pois ela é o primeiro contato relacional que temos na vida.
— Quando somos bebês, o alimento é a primeira forma de prazer que experimentamos e isso não tem relação com saciedade. Até os 3 anos, a parte cognitiva da criança ainda não está 100% formada, então ela não entende o que é fome. Nessa fase, ela vê o alimento como algo que traz satisfação, resultando em uma sensação de conforto físico e emocional — explica Pertusi.
Por esse motivo, ao longo da vida, continuamos associando a comida ao conforto e acolhimento, porque essa é a primeira impressão que temos dela.
— Em momentos de estresse, nosso corpo busca conforto, e a comida entra como uma linguagem que o cérebro entende rápido: sabores conhecidos e afetivos ativam a produção de serotonina e dopamina, os “hormônios do bem-estar”. É como se o prato dissesse: “você está seguro, está em casa” — afirma Quissak.
É daí que vem o conceito de comfort food, do inglês: uma comida que traz aconchego, aquele prato que fala com o coração antes de falar com o estômago.
— Não tem a ver com glamour ou técnica sofisticada, mas sim com memória, com afeto. Pode ser um arroz com feijão, um pão de queijo, um chá de erva-doce… Tudo depende da vivência de quem come — explica a nutricionista.
Quando a comida vira terapia
Nesse sentido, a comida também pode ser uma aliada para o cuidado emocional. De acordo com Pertusi, existem várias práticas terapêuticas que envolvem o uso da comida, do olfato, das refeições e até do ato de cozinhar como uma ferramenta emocional. Geralmente, elas são aplicadas no formato de exercícios práticos, podendo ser usadas em terapias de casal ou até no trabalho com pacientes em luto.
— Para alguns casais, o ato de cozinhar juntos pode trazer efeitos positivos para o relacionamento. Além disso, em outros casos, fazer pratos que lembram um familiar que se foi pode ajudar a lidar com o luto — explica a psicóloga, ressaltando que o uso terapêutico da comida varia conforme o perfil de cada paciente e nem sempre é indicado.
Ela acrescenta que, em muitos casos, o trabalho terapêutico envolve ressignificar a relação com o ato de comer, transformando refeições em família em momentos leves, livres de discussões, ou ajudando pessoas ansiosas a comer com mais calma e consciência. Pertusi reforça que a comida pode funcionar como um recurso de apoio à saúde emocional, mas é apenas um dos caminhos possíveis, e deve sempre vir acompanhada de uma relação equilibrada com o alimento.
Na cozinha, as memórias ganham sabor
Enquanto a ciência explica os mecanismos cerebrais e emocionais, na cozinha os sabores viram histórias vivas. Para Giovanna Grossi, chef de cozinha do restaurante Animus e do bar A Casa da Esquina, a comida pode emocionar pela surpresa, pela narrativa e pela conexão que cria.
— Um prato que me emociona e me transporta para a infância é a canjica que a gente fazia nas festas juninas em Alagoas, que lá a gente chama de curau. Lembro das fogueiras na praia, do milho assando na brasa e da família reunida. Quando provo algo parecido, volto direto para esses momentos — conta a chef.
No dia a dia do trabalho, Grossi explica que sempre tenta construir uma experiência que marque seus clientes, mas que não dá para saber qual memória vai ser despertada por um prato.
— Muitas vezes, não é um ingrediente específico, mas a soma deles no prato: o molho, a textura, o contraste. Já ouvi de clientes que a comida que servimos no Animus tem “alma”. Acho que é essa a sensação, quando a comida consegue se conectar a alguém de uma forma mais profunda — diz a chef de cozinha. — Tem clientes que me abraçam no final do jantar dizendo que aquilo os lembrou de alguém ou de uma situação da vida deles — completa.
Ao mesmo tempo, em que os sabores nos aproximam e nos trazem uma ideia de “lar”, eles também podem nos causar boas surpresas e despertar o nosso subconsciente. Segundo especialistas, é possível que pratos diferentes nos façam “viajar” com suas texturas, aromas e gostos.
— Quando provamos algo novo, o cérebro entra em modo de descoberta, como uma criança curiosa abrindo um presente. Isso ativa áreas relacionadas à recompensa e à criatividade, como o córtex orbitofrontal. Experimentar um sabor diferente pode abrir portas sensoriais, estimular a imaginação e até virar uma nova memória afetiva para o futuro — explica Quissak.
Pertusi acrescenta que cada cérebro é único e funciona de uma maneira diferente diante de um estímulo. Por isso, a questão dos novos sabores despertarem a imaginação e os sentidos vai depender da fluidez mental de cada um.
— Cérebros e mentes flexíveis, com bom fluxo mental e que não tem tendência de rejeição ao novo, podem, sim, ser levados pela imaginação ao sentir um novo aroma ou sabor — afirma a psicóloga.
A cozinha como guardiã das nossas raízes
Assim como novos sabores despertam a imaginação, os antigos guardam lembranças e tradições que resistem ao tempo — e é na cozinha regional que essa herança ganha vida.
Para Grossi, a cozinha regional é uma grande fomentadora da identidade coletiva, pois mantém vivas práticas e saberes que não podem se perder. Ao serem incorporados na cozinha contemporânea e reinterpretados, ela acredita que esses elementos preservam essa memória coletiva em circulação.
— Um prato que representa a minha história de vida é a moqueca: ela fala de Brasil, de mar, de encontro, de mesa cheia. Cresci no Nordeste comendo peixe e frutos do mar e sempre estive nos restaurantes da minha família. Depois, viajei muito, estudei técnicas diferentes, mas esse repertório sempre volta. A moqueca, para mim, junta origem e trajetória — conclui a chef.
No fim, é assim que a comida cumpre seu papel mais humano: alimentar o corpo, despertar memórias e aquecer a alma.
Fonte: O Globo


