Todo fim de ano tem suas luzes, seus rituais, suas mesas cheias. Mas, entre uma decoração e outra, existe sempre um espaço que ninguém comenta. É o espaço das dores guardadas. Mágoas que ficaram presas no peito, conversas que nunca aconteceram, nomes que evitamos pronunciar. Às vezes, o que pesa não é o que vivemos, mas o que seguimos carregando. Há histórias que encerramos por fora, mas continuam abertas por dentro.
Falar em perdão nessa época pode soar piegas. Só que, quando olhamos com atenção, o perdão não é um gesto abstrato ou espiritualizado demais. Ele mexe com o corpo inteiro. A ciência mostra que guardar ressentimento mantém o organismo em alerta, como se estivéssemos sempre prontos para um ataque que não chega. O coração acelera, a pressão sobe, músculos se contraem. O cérebro ativa regiões ligadas ao medo e à ameaça. A mágoa crônica transforma o corpo em território de tensão. E ninguém merece atravessar mais um ano assim, vivendo como se cada lembrança dolorosa fosse um campo minado.
O contrário também é verdadeiro. Estudos mostram que perdoar reduz a reatividade ao estresse. O coração desacelera. A respiração se solta. A mente para de rodar o mesmo filme doloroso em looping. É como se alguém abrisse uma janela dentro da gente e deixasse entrar ar novo depois de anos respirando num quarto fechado. Não se trata de esquecer, muito menos de aprovar o que aconteceu. Trata-se de não permitir que a ferida continue definindo o que somos. De impedir que o passado crie raízes onde já não deveria morar.
Perdoar exige coragem. E existe mais de um tipo de coragem. Há o perdão decisório, quando você escolhe não se vingar, não perpetuar o ciclo. É uma decisão racional. Mas existe o perdão emocional, bem mais profundo, quando a raiva vai perdendo espaço, quando o coração para de endurecer só para conseguir sobreviver. É esse segundo tipo que transforma vidas. Libera energia, abre espaço para esperança, devolve leveza a quem andava pesado demais. É como ajustar um ritmo interno que estava fora do compasso.
A mágoa, quando amadurece, vira ruminação. A cabeça repete a mesma cena incontáveis vezes, ensaia diálogos imaginários, revive dores antigas, sempre com o desfecho que gostaríamos de ter dito, feito ou ouvido. A ciência chama isso de ruminar. Todo mundo já fez. Mas poucos percebem o quanto esse hábito consome. Quando trabalhamos o perdão, a ruminação diminui. A mente finalmente descansa. É como se o coração pudesse voltar ao seu eixo natural, menos acelerado, menos vigilante, menos cansado de vigiar feridas antigas.
E talvez o aspecto mais bonito do perdão seja o que os psicólogos chamam de reumanização. Depois de uma grande ofensa, o outro vira vilão. E nós viramos vítimas. Só que o perdão devolve nuances ao mundo. Ele devolve profundidade a quem parecia plano. Permite enxergar a humanidade que existe até em quem nos feriu. E devolve a nós a capacidade de não sermos definidos por um único capítulo da vida. Não é sobre voltar a conviver. É sobre não permitir que o passado dite quem somos no presente.
Dezembro chega para lembrar que nenhum ano é só conquista ou fracasso. Todo ano é também feito de cicatrizes. E algumas delas já poderiam ter parado de sangrar. Por isso, este é um convite. Olhe para a sua lista invisível de nomes que ainda doem. Talvez haja uma conversa a ser retomada. Talvez haja um silêncio que precisa ser aceito. Talvez a pessoa que você mais precise perdoar seja você mesmo.
Perdoar não muda o que foi vivido. Mas muda o peso com que você atravessa o que vem. É uma forma de cuidado que trabalha em silêncio, mas transforma tudo ao redor. Ao escolher perdoar, você devolve ao corpo a chance de descansar, à mente a chance de respirar, à vida a chance de seguir com menos resistência interna. É, no fim das contas, um presente que você se oferece.
Fonte: O Globo


