A herança negra na alimentação

Baianas do acarajé estão entre as fortes heranças da cultura africana no Brasil — Foto: Hudson Pontes/Prefeitura do Rio

Hoje é o Dia Nacional da Consciência Negra, data que homenageia Zumbi dos Palmares, líder do maior símbolo de resistência negra do Brasil. Morto em 1695 por bandeirantes, dedicou sua vida à liberdade e à defesa do Quilombo dos Palmares, um refúgio de dignidade para pessoas escravizadas. Sua data de morte, resgatada nos anos 1970, inspirou o Movimento Negro Unificado a reconhecê-lo como ícone da luta por direitos e igualdade. Por isso, o 20 de novembro tornou-se a mais importante data de enfrentamento ao racismo, diferentemente do 13 de Maio, que marcou uma liberdade incompleta e sem inclusão. Neste dia, o Brasil é chamado a refletir, honrar e transformar, mantendo viva a resistência que Zumbi iniciou.

A cultura negra, mais precisamente a africana, já que a imensa maioria dos escravos veio desse continente, chegou ao Brasil com sua cultura: bantos, nagôs, jejes, hauçás, malês — povos com idiomas, rituais e saberes diversos. Mesmo diante da violência da colonização, essas culturas resistiram e floresceram.

Sua presença moldou o Brasil em cada detalhe: na dança, na música, na religião, na culinária e até no nosso modo de falar. Estados como Bahia, Maranhão, Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo carregam essa marca com ainda mais intensidade.

Dos cultos aos orixás nasceu o candomblé, e mais tarde a umbanda, que mistura espiritualidade africana, catolicismo e espiritismo.

Talvez em nenhum outro país do mundo a gastronomia tenha sofrido tanta influência do povo preto quanto o Brasil.

A culinária afro-brasileira nasceu no período colonial, quando a presença portuguesa e o sistema escravista criaram um intenso intercâmbio de plantas, sabores e técnicas, unindo tradições alimentares europeias, indígenas e africanas. Esse processo de mistura começava ainda na África, quando pessoas escravizadas entravam em contato com novos alimentos antes mesmo de serem trazidas ao Brasil.

Como expressão cultural, a alimentação refletia a estrutura social da época: pessoas escravizadas, na base da hierarquia, tinham acesso restrito à comida, o que gerava carências nutricionais. Ao mesmo tempo, a comida era parte essencial das práticas religiosas africanas, o que garantiu a preservação de muitas receitas.

Nas ruas, mulheres escravizadas (as famosas negras de tabuleiro) vendiam pratos, bebidas e doces, deixando como legado iguarias como o acarajé, originário do Golfo do Benim. Enquanto a elite consumia produtos europeus e carnes valorizadas, a população pobre e escravizada sobrevivia com preparações simples: farinha, feijão, toucinho, carnes e peixes secos, além de frutas como banana e laranja.

Eles consumiam preparações como o cuscuz (o paulista, o baiano e o mineiro), angu, canjica, mingau e ingredientes comuns no nosso dia a dia, tal qual o inhame, cará, quiabo, amendoim, pimenta, coco, azeite de dendê e o tão celebrado café.

O que valorizamos hoje em alguns restaurantes estrelados é fruto de também de barbáries, apropriações culturais e, principalmente, resistências que moldaram nossa mesa. Como lembra Rute Ramos da Silva, professora da UFRJ, é impossível falar de comida no Brasil sem reconhecer as violências, apropriações culturais e, principalmente, resistências que moldaram nossa mesa.

Segundo Rute, a narrativa histórica tende a colocar a culinária europeia como protagonista, enquanto os saberes alimentares indígenas e africanos são tratados como meras participações secundárias. Essa “hierarquia do prato principal”, como ela descreve, funciona como uma metáfora das próprias relações sociais do país: vozes dominantes aparecem em destaque, enquanto as demais são silenciadas ou desvalorizadas.

Desse modo, a gastronomia brasileira também é fruto de desigualdades, conflitos e resistências.

Fonte: O Globo

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Cultura

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