Qual Bíblia seria a oficial? A minimalista evangélica com 66 livros, a católica romana com 73 ou a da Igreja Ortodoxa, com 76 livros? O assunto foi debatido na 49ª reunião da Comissão de Educação e Cultura do Senado, no dia 30 de outubro, em sessão presidida pela senadora Damares Alves (Republicanos).
A sessão do Senado discutiu o Projeto de Lei 4606/19, que propõe “vedar qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada para manter a inviolabilidade de seus capítulos e versículos, garantindo também a pregação do seu conteúdo em todo o território nacional”. O projeto foi proposto pelo deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante) e já foi aprovado na Câmara e na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.
Segundo os especialistas em teologia e direito ouvidos na sessão, se aprovado o PL 4606/19, o Congresso Nacional terá de criar uma comissão com especialistas nos textos bíblicos para elaborar a tradução da Bíblia que seria reconhecida como oficial pelo Estado brasileiro.
A motivação da iniciativa ficou explícita no parecer favorável do senador Magno Malta: “A Bíblia não deve ser objeto de alterações motivadas por ideologias, agendas culturais ou militantes. O que está em jogo aqui não é apenas o texto, mas a fé do povo simples, sincero e devoto que encontra nas Escrituras conforto, orientação e salvação”.
O propósito do Projeto de Lei é impedir a pluralidade hermenêutica de tradução e interpretação dos textos bíblicos. Por exemplo, há debate na comunidade bíblica acadêmica se os termos gregos malakoi e arsenakoi, 1ª Coríntios 6:9, traduzidos costumeiramente como “efeminados e sodomitas” não seriam mais bem traduzidos respectivamente como “covardes e abusadores”. A primeira tradução é utilizada para sustentar que a homossexualidade é um pecado que condena os seus praticantes ao inferno. No caso da segunda tradução, entende-se que o pecado condenado é a violência sexual e não a homossexualidade.
Ao se propor a proibição de qualquer “alteração” do texto bíblico o que se pretende é silenciar os debates bíblicos e teológicos que envolvem questões comportamentais da atualidade. Claro que em favor da interpretação de estimação do senador Magno Malta, essa considerada isenta de ideologia.
Renato Gugliano, especialista em direito que representou a Igreja Universal do Reino de Deus na sessão, apontou para a inconstitucionalidade do PL 4606/19. Segundo seu parecer, o projeto propõe controle do texto sagrado e isso viola os princípios constitucionais da laicidade e da neutralidade religiosa do Estado brasileiro.
Os teólogos de diferentes confissões religiosas convidados para a sessão, especialistas em grego e hebraico, foram unânimes em reconhecer que o projeto é inviável, sob o ponto de vista da técnica da tradução dos textos bíblicos, e indesejável sob o ponto de vista do exercício da liberdade religiosa e acadêmica.
Os especialistas nos idiomas bíblicos mostraram as diversas traduções católicas e evangélicas da Bíblia em circulação no país. Essas traduções foram feitas a partir de cópias de manuscritos em hebraico, grego e aramaico. Os originais dos textos bíblicos não são conhecidos e as cópias possuem divergências entre si, chegando ao ponto de não haver cem por cento de coincidência textual entre nenhum dos manuscritos. Então, como seria produzida a tradução oficial da Bíblia do Congresso Nacional do Brasil?
O mérito da sessão presidida pela senadora Damares Alves foi reunir especialistas de correntes teológicas conservadoras e progressistas. Não obstante o consenso entre os teólogos pela reprovação do PL 4606/19, na consulta pública os votos favoráveis à aprovação do projeto somam mais de 90%. Como o leitor vota?
Fonte: Folha de S. Paulo



