Vício e compulsão: estudo inédito revela que cães podem ter comportamentos considerados humanos

Border collie, uma das raças que foram estudadas — Foto: Unsplash

Pessoas e cães compartilham mais do que amizade. Dois novos estudos revelaram que os cachorros podem apresentar tipos de comportamentos considerados, até agora, exclusivamente humanos. Eles abrem ainda uma nova janela para a compreensão da relação entre humanos e cães, uma parceria iniciada há pelo menos 15 mil anos, quando se estima que os primeiros lobos tenham sido domesticados.

A primeira pesquisa mostrou que alguns cães podem se tornar compulsivos com seus brinquedos assim como seres humanos, por exemplo, podem se viciar em jogos de azar ou eletrônicos.

Já o segundo trabalho demonstrou que alguns cães, considerados “superdotados”, são capazes de classificar objetos por função naturalmente, algo até então observado só em poucos animais submetidos a treinamentos intensivos, nunca de forma espontânea.

Embora cães tenham comportamentos complexos e muitas vezes possam reproduzir emoções e hábitos de seus tutores, essa é a primeira vez que se prova cientificamente que podem desenvolver vícios e compulsões.

O estudo sobre vício canino foi publicado na edição desta semana da revista Scientific Reports. Seus autores sugerem que os cães são o primeiro exemplo não humano de uma espécie que desenvolve espontaneamente comportamentos semelhantes a vício.

Tudo por uma bolinha

A descoberta pode levar a uma melhor compreensão também sobre os vícios humanos, afirmou Alja Mazzini, da Universidade de Berna, na Suíça, principal autora do estudo. Pois, o trabalho pavimenta o caminho para investigações sobre impulsividade, atenção e recompensa em cães. E esses mesmos aspectos são importantes para o estudo de transtornos humanos como TDAH e compulsões.

Mazzini e seus colegas constataram que alguns cães parecem não conseguir viver sem seus brinquedos favoritos, como bolinhas. E essa obsessão supera o simples entusiasmo e se assemelha a um vício.

Os vícios em seres humanos se caracterizam pelo envolvimento compulsivo em determinadas atividades, mesmo com consequências negativas. Embora já houvesse relatos de que alguns cães exibem comportamentos semelhantes a vícios em relação a brinquedos — por exemplo, choramingar quando o brinquedo está fora de alcance e continuar brincando apesar do cansaço excessivo ou de lesões —, a nova pesquisa é a primeira avaliação científica publicada sobre o tema.

Os cientistas compararam sintomas de vício humanos, como sentir desejo intenso e dificuldade em interromper ou controlar um comportamento, com os de 105 cachorros. Estes foram selecionados por serem, segundo seus tutores, “muito motivados a brincar com determinado brinquedo”.

Foram analisados os comportamentos de 56 cães machos e 49 fêmeas em relação a um brinquedo escolhido pelos próprios cães no início do teste. Os cães tinham entre 12 meses e 10 anos de idade. As raças mais frequentes foram pastor malinois (18 cães), border collie (nove) e labrador (nove).

Movido por impulso

A compulsão parece ser mais usual em raças de trabalho, conhecidas por seu alto impulso para brincar e caçar. Segundo os cientistas, em alguns casos, a motivação exagerada pode ter sido reforçada pela seleção genética voltada ao desempenho.

Os autores também consideraram o comportamento cotidiano de seus cães em relação aos brinquedos.

Os cientistas viram que 33 cães apresentaram comportamentos semelhantes a vícios. Esses comportamentos incluíam fixação excessiva em um determinado brinquedo; falta de interesse em alternativas como comida ou brincadeiras com o dono; tentativas persistentes de alcançar o brinquedo quando ele estava indisponível e incapacidade de se acalmar por até 15 minutos após todos os brinquedos serem retirados.

Quando o brinquedo estava fora de alcance, esses cães tendiam a passar mais tempo focados nele e tentando acessá-lo, priorizando essa tentativa em vez de comer ou interagir com o dono.

Os animais foram submetidos a uma série de testes. Eles podiam escolher entre brinquedos, comida e interação social. Em várias situações, os cães mais “viciados” ignoravam todas as alternativas e permaneciam tentando recuperar o brinquedo. Mesmo quando estavam cansados, sozinhos ou quando o objeto era retirado, continuavam excitados e inquietos.

— Alguns cães demonstraram um grau de envolvimento que poderíamos chamar de compulsivo e semelhante a vícios comportamentais humanos — afirmou Stefanie Riemer, da Faculdade de Medicina Veterinária de Viena, na Áustria, e uma das autoras do estudo.

Prazer perigoso

Segundo o estudo, as reações dos cães lembram os mecanismos ligados a vícios em humanos. Em ambos os casos, o comportamento começa proporcionando prazer, mas evolui para compulsão sem caráter prazeroso.

Nos humanos, o vício games ou apostas, por exemplo, ativa os mesmos sistemas cerebrais de recompensa ligados ao neurotransmissor dopamina e aos opioides. Os autores acreditam que entender esses paralelos entre espécies pode ajudar a desvendar os fundamentos biológicos dos vícios comportamentais.

“Assim como algumas pessoas jogam até prejudicar a própria vida, certos cães parecem incapazes de parar de brincar. Porém, nem todo entusiasmo é um vício. Ainda não temos critérios clínicos para definir quando o prazer se torna patológico”, disseram os cientistas no estudo.

Os cientistas planejam estudar se os cães “hipermotivados” apresentam diferenças neurológicas ou genéticas, e se há paralelos com distúrbios observados em humanos.

Enquanto isso, os autores recomendam cautela. Brincar é saudável e essencial para o bem-estar canino, mas quando o cachorro ignora comida, donos ou descanso em favor do brinquedo, talvez seja hora de dar uma pausa no jogo.

Superdotados caninos

Já um estudo publicado na revista Current Biology mostrou que alguns cães aplicam o nome de uma categoria — como “busque” ou “puxe” — a brinquedos novos que servem para a mesma função, mesmo que nunca tenham ouvido essas palavras associadas a esses objetos antes.

Com base na descoberta de que alguns cães são capazes de formar um amplo vocabulário de nomes de objetos de maneira espontânea, em interações diárias com seus tutores, os pesquisadores mostraram que esses animais conseguem generalizar palavras para novos objetos que compartilham apenas a função — e não a aparência.

No estudo, por meio de brincadeiras que simulavam situações naturais, os cães classificaram objetos inéditos de acordo com seu uso funcional, e não apenas com base em semelhanças visuais.

Os cientistas liderados por Claudia Fugazza, da Universidade Eötvös Loránd, na Hungria, analisou 10 cães “superdotados em vocabulário” de diferentes países.

Os tutores desses cães receberam oito brinquedos novos, que poderiam ser usados de duas maneiras: para buscar (lançados para o cão trazer de volta) ou para puxar (em brincadeiras de cabo de guerra). Cada brinquedo foi aleatoriamente classificado como “puxe” ou “busque”, mas sem que sua aparência indicasse a função.

Os tutores desses cães receberam oito brinquedos novos, que poderiam ser usados de duas maneiras: para buscar (lançados para o cão trazer de volta) ou para puxar (em brincadeiras de cabo de guerra). Cada brinquedo foi aleatoriamente classificado como “puxe” ou “busque”, mas sem que sua aparência indicasse a função.

Em seguida, os tutores testaram o aprendizado pedindo que os cães encontrassem brinquedos específicos entre vários outros. Sete dos dez cães acertaram e passaram à fase seguinte. Nesta, precisavam associar os nomes a brinquedos totalmente novos, sem instruções verbais.

Na nova etapa, os tutores receberam outros oito brinquedos, também divididos entre “puxe” e “busque”, mas desta vez sem usar essas palavras. Eles apenas brincaram de puxar ou buscar com cada brinquedo, sem dar nenhum nome.

Depois de uma semana, os cães foram testados. Quando os tutores pediram um “busque” ou “puxe”, os animais precisavam escolher entre brinquedos novos e antigos.

Mesmo sem nunca terem ouvido os nomes aplicados aos novos brinquedos, os cães acertaram dois terços das vezes, uma taxa muito superior ao acaso.

“Esses sons parecem ter um significado que pode ser expandido para objetos completamente diferentes, desde que tenham a mesma função”, explicou Fugazza.

Embora o grupo de cães testados tenha sido pequeno, o resultado é significativo, avaliou Juliane Bräuer, psicóloga comparativa do Instituto Max Planck de Geoantropologia, na Alemanha. Segundo ela, não se pode pensar que todos os cães são capazes disso, mas é possível inferir que eles têm potencial para desenvolver esse tipo de habilidade.

A descoberta é especialmente interessante porque os cães evoluíram lado a lado com os humanos, adaptando-se ao ambiente e à comunicação social das pessoas.

De qualquer forma, a descoberta demonstra que os cães são capazes de classificar objetos por função em contextos naturais, algo até então observado apenas em poucos animais submetidos a treinamentos formais intensivos.

No ser humano essa capacidade aparece na infância. Bebês aprendem a aplicar uma mesma palavra a objetos diferentes com base em sua função. Por exemplo, chamando de “copo” tanto uma xícara quanto uma mamadeira. Alguns chimpanzés e bonobos treinados em linguagem também agrupam objetos por função.

Encontrar esse tipo de raciocínio em cães, porém, surpreendeu os cientistas.

“Isso sugere que as raízes dessas capacidades estão espalhadas de forma muito mais ampla na árvore evolutiva”, disse à revista Science a psicóloga evolutiva Heidi Lyn, da Universidade do Sul do Alabama, que não participou do estudo.

Fonte: O Globo

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