STF entra na fase decisiva da ação do golpe com interrogatório de Bolsonaro; veja estratégias

Ministro Alexandre de Moraes na Primeira Turma do STF que julga denúncia sobre o núcleo 1 da Pet 12.100. Foto: Rosinei Coutinho/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) entra nesta semana na fase mais decisiva até aqui da ação penal que julga o núcleo central da tentativa de golpe de Estado. Com o início dos interrogatórios, o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus serão confrontados, pela primeira vez, diretamente por Alexandre de Moraes, relator do caso, pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e também por advogados das demais defesas.

A expectativa de criminalistas com trânsito na Corte ouvidos é que essa etapa revele estratégias defensivas conflitantes, ampliando o risco de confronto entre os próprios réus. As defesas, por sua vez, veem no interrogatório um momento-chave para tentar desmontar a denúncia apresentada pelo procurador-geral Paulo Gonet, expondo fragilidades da peça acusatória e confrontando versões de outros envolvidos.

O primeiro a ser ouvido será Mauro Cid, delator e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Na sequência, os interrogatórios seguirão ordem alfabética: Alexandre Ramagem (deputado federal e ex-diretor da Abin), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), general Augusto Heleno (ex-chefe do GSI), Jair Bolsonaro, Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa) e Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil). As audiências devem ocorrer até o dia 13.

O criminalista e professor da USP Pierpaolo Bottini lembra que o interrogatório não apenas antecede o julgamento no plenário da Primeira Turma, como também representa o único momento em que os próprios réus apresentam suas versões. “É uma etapa crucial para o desfecho do julgamento”, afirma.

Bottini destaca que o fato de as defesas poderem questionar outros réus amplia o potencial de confronto entre versões, como já se viu nos depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa nas últimas semanas. “O objetivo de cada defesa é tirar seu cliente da cena dos crimes imputados pela PGR.”

Um exemplo desse embate ocorreu durante o depoimento do ex-comandante do Exército Marco Antônio Freire Gomes, quando veio à tona a discussão sobre a chamada “minuta golpista” – um esboço de decreto que, segundo a investigação, justificaria uma intervenção militar para anular o resultado das eleições de 2022. O advogado Eumar Novacki, defensor de Torres, insistiu em obter detalhes sobre reuniões no Palácio da Alvorada em que o documento teria sido discutido. Diante das negativas de Freire, Moraes interrompeu a audiência e afirmou que a Corte não seria transformada em “circo”.

Mesmo após o episódio, Novacki afirma que Torres responderá a todas as perguntas com o máximo de detalhes, embora tenha, como os demais réus, o direito constitucional ao silêncio. “Vamos aproveitar a fase de interrogatório, que é a principal para a defesa, para esclarecer os pontos obscuros, apontar contradições na peça da PGR e, se necessário, confrontar versões apresentadas por outras defesas”, diz.

Para o professor Gustavo Badaró, também da USP, essa deve ser a linha predominante: identificar fragilidades na denúncia e explorar contradições entre as versões dos réus. “Já vimos essa estratégia na fase das testemunhas, e ela deve se repetir agora”, afirma.

Entre os interrogatórios, o de Jair Bolsonaro – o sexto a depor – é considerado o mais decisivo por advogados e criminalistas ouvidos pela reportagem, já que a PGR o descreve como o principal articulador e beneficiário da trama golpista, o que aumenta a tensão e a complexidade da audiência.

A avaliação é compartilhada pelo advogado Jeffrey Chiquini, que representa o tenente-coronel Rodrigo Bezerra, do núcleo 3. “Todos os réus, de alguma forma, estão ligados à atuação direta ou indireta do ex-presidente”, diz. Outro defensor de um dos réus, que pediu anonimato, classifica o interrogatório de Bolsonaro como “peça-chave” e resume: “Tudo gira em torno dele.”

Badaró concorda e destaca que, justamente por essa centralidade, a estratégia da defesa de Bolsonaro exigirá uma articulação cuidadosa. Segundo ele, a linha defensiva deve atuar em duas frentes. A primeira é alegar que os atos descritos na denúncia não passaram da fase de cogitação ou foram discutidos dentro dos instrumentos previstos na Constituição – como Estado de Defesa, Estado de Sítio ou GLO. A segunda é sustentar que, caso alguma prática ilícita tenha ocorrido, ela se deu sem a anuência de Bolsonaro, sendo os principais beneficiários os generais que o cercavam no Palácio.

Para alinhar essa estratégia, o ex-presidente foi a São Paulo na última sexta-feira, 6, onde se reuniu com seus advogados para se preparar para o interrogatório no Supremo.

Outro momento de tensão será o depoimento de Cid, cuja delação premiada embasou boa parte da denúncia da PGR. A colaboração do ex-ajudante de ordens vem sendo contestada desde a fase de indiciamento até o recebimento da denúncia.

Na ocasião, as defesas de Bolsonaro e do general Braga Netto tentaram anular o acordo, alegando coação e falta de voluntariedade. Embora o plenário tenha validado a delação, ministros como Luiz Fux, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin e Flávio Dino deixaram aberta a possibilidade de rediscutir sua validade no curso da ação penal.

Diante disso, Chiquini acredita que o depoimento de Cid marcará o início de uma série de embates diretos entre os acusados. Ele aponta como alvo principal as “idas e vindas de versões” apresentadas por Cid durante sua colaboração. Outro advogado de um dos réus afirmou que as defesas vão “explorar” essas contradições. “Não é possível que você tenha nove versões de uma delação”, afirmou. “Vai ser um tentando jogar a culpa no outro.”

Essa disputa de narrativas, na avaliação do criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tende a marcar toda a fase de interrogatórios. Para o jurista, as defesas devem tentar isolar a responsabilidade de seus clientes e atribuir a autoria aos demais, em um movimento de sobrevivência individual diante da gravidade das acusações.

Kakay destaca ainda que, diferentemente das fases anteriores, agora será a voz direta dos acusados em jogo, o que pode gerar reações impulsivas e até agravar a situação de alguns réus pelas declarações de outros. “É o momento de tudo ou nada”, resume.

Moraes é criticado por conduta

A postura de Moraes também deve ser acompanhada de perto pelas defesas. Dois advogados dos acusados ouvidos pela reportagem apontam o que consideram excessos cometidos pelo ministro, que representariam atropelos processuais e violações ao direito à ampla defesa.

Eles citam dois episódios recentes: o primeiro foi a reprimenda ao general Freire Gomes, após ele minimizar o episódio em que teria dado voz de prisão a Bolsonaro durante uma reunião no Planalto, em 2022. O segundo envolveu o ex-ministro Aldo Rebelo, cujo depoimento foi interrompido por Moraes, que chegou a ameaçá-lo com prisão por desacato. “Ele adota uma postura típica da promotoria”, criticou um dos defensores.

Outro foco de queixa é o prazo e o acesso às provas. Um dos advogados afirmou que sua equipe precisou recorrer a ferramentas de inteligência artificial para vasculhar o material disponibilizado.

“São cinco mil páginas para analisar em três ou quatro dias, enquanto o MP teve 50. Se houver algo útil para a defesa, temos o mesmo direito de acesso e preparação. É assim que deveria funcionar o processo penal”, conclui.

Fonte: Estadão

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