A proximidade do feriado da Páscoa nos remete à crença que está no coração da cristandade: a ressurreição de Jesus. Para os cristãos, trata-se de um fato fundamental. Mas, mesmo para quem não compartilha dessa fé, o símbolo da ressurreição oferece uma provocação: a possibilidade de superar o que muitas vezes parece ser o fim.
Numa época marcada por tantos episódios de esgotamento —emocionais, ambientais, sociais—, é quase subversivo afirmar que recomeços são possíveis. Seja no consultório ou na igreja, cuidar de pessoas me lembra que a esperança de renascer é um aprendizado vital.
Uma história me marcou das muitas que ouvi de quem insistiu em acreditar na possibilidade da redenção. Renata era uma amiga da adolescência, que cresceu na mesma igreja que eu. Mudou-se para os Estados Unidos para estudar, e perdemos contato. Anos depois, já pastor, recebi uma ligação: Renata havia se tornado dependente do crack, e sua família a trouxe de volta ao Brasil para iniciar um tratamento.
Na clínica, ela me contou que a melhor forma que encontrou para lidar com sua adicção foi parar de contar os “dias limpos” —expressão usada para indicar o tempo de abstinência da substância. A contagem cumulativa, disse ela, só aumentava a culpa diante da possibilidade de recair. Renata preferiu viver cada dia como um recomeço, fazendo da morte e ressurreição de Jesus uma metáfora pessoal.
Como pastor, penso que ela não poderia ter escolhido melhor narrativa bíblica para ressignificar uma luta tão difícil de ser vencida.
A história da Páscoa propõe um recomeço que não apaga as marcas do passado, mas reconhece que a vida insiste em brotar mesmo no terreno devastado. Na narrativa bíblica, Jesus ressuscita com as feridas da crucificação. Isso importa —porque lembra que o que nos fez sofrer não necessariamente desaparece, e pode ser incorporado à nova forma de viver.
E é assim que acontece. Recomeçar não é privilégio de momentos extraordinários —é parte do cotidiano. Pessoas renascem quando mudam de carreira após anos na mesma profissão, quando retomam os estudos depois de uma longa pausa, quando saem de um relacionamento tóxico ou finalmente decidem pedir ajuda para lidar com a ansiedade que sempre ignoraram.
Às vezes, o recomeço é silencioso e incerto. Vejo a luta de pessoas tentando reconstruir a confiança depois de uma traição no casamento ou em uma amizade. Nesses casos, é comum que quem errou queira apressar o retorno ao que era antes —como se um pedido de perdão bastasse para restaurar tudo. Mas reconstruir exige tempo. E paciência.
Mesmo na tradição cristã, a ressurreição não acontece de forma imediata. Entre a cruz e o túmulo vazio há o sábado do silêncio —um intervalo em que nada parece fazer sentido. Não seria isso uma metáfora das incertezas que marcam o tempo entre o que julgamos ser o fim e o que, mais tarde, reconhecemos como recomeço?
Como na narrativa da Páscoa cristã, quando a ressurreição de alguém acontece, ela costuma ser recebida com descrença. Mas, embora o ceticismo alheio incomode, ele não deveria impedir ninguém de recomeçar.
Já se passaram 15 anos, e Renata segue contando cada manhã como um renascimento. A Páscoa é um roteiro que cabe na vida de qualquer pessoa cuja história sobreviveu aos prognósticos mais pessimistas dos espectadores de plantão; inclusive na de quem não crê.
Fonte: Folha de S. Paulo